segunda-feira, 6 de setembro de 2010

AIRTON MONTE LANÇA: " BAILARINOS "


Cultura
ENSAIO

O discurso ficcional de Airton Monte


" Airton Monte é poeta, cronista, contista, letrista e dramaturgo; seus temas recaem por sobre o cotidiano e o universo psíquico das personagens.

" O cronista, poeta e ficcionista Airton Monte retorna, com "Bailarinos" ao conto, inscrevendo-se como uma das mais altas vozes da narrativa curta em nossa contemporaneidade, uma vez que suas composições revelam, antes de tudo, um absoluto domínio das marcas desse gênero na pós-modernidade

Os 34 contos que compõem o livro "Bailarinos" comportam como marcas singulares o primado pela concisão - de que decorrem a valorização da expressão nominal e o recurso da fragmentação sintática - e pela escolha meditada do vocabulário, no sentido de que este implica uma intrínseca harmonia, tanto em relação ao espaço da trama quanto à inserção das personagens em suas respectivas realidades, quando, quase sempre, acham-se em desarmonia com os valores por que se rege o banquete burguês, convertendo-se, sobretudo, em seres postos à deriva do contexto social. No primeiro caso, o mais comum é o entrelaçamento da expressão nominal à fragmentação sintática, contribuindo, assim, para a construção da atmosfera da trama, pois, com isso, as pausas dramáticas acabam constituindo modos de configurações do mundo interior das personagens, lançadas estas, constantemente, em situações movediças ou num leque angustiante de incertezas: (Texto I)


A escolha lexical

O estar à esquerda dos acontecimentos, (no sentido do "gauche" de Carlos Drummond de Andrade) a sensação permanente de exclusão, a consciência crua de que não participam, substancialmente, da construção de si mesmas enquanto humanos num estado de plenitude, tudo isso assoma, nas personagens, através de uma propriedade lexical - segunda marca estilística do discurso de Airton Monte. Em alguns contos, por exemplo, observa-se o emprego reiterado de palavrões, por meio dos quais uma personagem expressa o esfacelar de sua condição humana; outras vezes, tal recurso cede lugar a uma escolha de vocábulos a partir dos quais o estado anímico da personagem é anunciado por meio de sua indelével degradação física: (Texto II)

A construção do foco

Ainda na literatura de tendência realista ou mesmo naturalista o modo por que as personagens se relacionavam consigo mesmas ou com os diversos extratos sociais estava atrelado às leis da verossimilhança. Sendo assim, a narrativa de ficção (novela, romance ou conto) concernia a uma redução do mundo real ou a uma explicação deste; afinal de contas, a ficção possuía como objeto de interesse a própria sociedade ou indivíduo isoladamente; havia, pois, uma leitura unitária da realidade. Disso resultava um ponto de vista, isto é, um modo de contar, de articular uma situação-ambiente, concentrado em dois caminhos nítidos: o foco narrativo em primeira pessoa (ou interno, no qual a trama é vista de dentro, por meio de uma personagem que vive os acontecimentos ou com estes convive); ou o foco narrativo em terceira pessoa (ou externo, um narrador, quase sempre com marcas de onisciência, - mergulha na intimidade das personagens, desvendando-lhes até o inconsciente - conta uma história da qual não participa, mas dela tudo sabe), conforme as escolhas do autor: (Textos III e IV, respectivamente)

Outro rumo

A partir da modernidade, a automação, o indivíduo esfacelado por experiências contrastantes ou mesmo inconciliáveis, a dissolução dos elementos delimitadores do tempo e do espaço, tudo isso estilhaçou tal concepção de foco narrativo. Hoje, o que se imprime é uma multiplicação de vozes narrativas, que se alternam ao longo da trama, quando não se mostram intrincadas, como elos de uma cadeia que não se dissolve. Tais procedimentos decorrem da superposição de planos, pela fusão de experiências do presente com as do passado; e a decomposição moral, psíquica e às vezes física da personagem decompõe também o enredo, desarticulando, assim, o ponto de vista do processo narrativo: (Texto V)

A singularidade desse ponto de vista reside em tornar possível uma desconstrução dos parágrafos, ou seja, estes podem muito bem ser lidos conforma uma escolha do leitor, sem que tal alteração suscite uma fratura na compreensão do texto como um todo. O que existe, a rigor, é uma coerência interna a formar um inequívoco sintagma narrativo.

Trechos

TEXTO I

Domingo que vem. Primeiro de maio. Eliana vem? Traz os meninos?
Doce de leite? Galinhazinha à cabidela? Cigarro? Eliana vem. Sei que vem.
O rosto de Eliana. Não é mulher de vagabundo coisa nenhuma. Mulher de homem direito. Azarado, mas correto. Trabalhador. Com carteira assinada e tudo. ("Um pátio em sombras longe demais", p.69)


TEXTO II

Som fino, rescante. Sino fanhoso.
Parece nascer de dentro dele, dos tímpanos arrebentados quando a manhã se anuncia inexorável.
A mão pesada move-se para o lado e para cima e abafa o despertador.
Abre os olhos estremunhados, remelentos. Amargores na boca, náusea, ânsia. Brônquios repletos de secreção gelatinosa que força o ar em assobios finíssimos quando tenta respirar o não consegue. Asma. ("Alba sanguínea", p. 71)


TEXTO III

Marcos empurrou a porta com força.
A primeira cara que ele viu foi Vadico sentado num banco de madeira, cabeça baixa, as mãos cruzadas metidas entre as pernas. Caminhou até ele, tocou-lhe o ombro magro, suado. ("Na grande área", p. 39)


TEXTO IV

Lembras? Eu tinha um verdadeiro ódio de teu marido nas tardes parnasianas paralisadas pela espera angustiante das cinco horas da tarde quando ele parava o carro defronte do colégio. Eu ficava junto ao portão contanto as falhas das calçadas e via somente a ponta dos teus sapatos Luís XV se agigantarem do meu nariz. E não podia, sequer, tocar-te. ("O caso da primeira professora", p. 111)


TEXTO V

Espero que ele volte. Não o primeiro. Não tenho medo dele. Porque tem rosto e nome. Do segundo tenho medo. Amor, uma coisa amorfa feito lama.
Ela lembra dele. Como esquecer um sonho? Gostaria de vê-lo, disputar com ele a presa na floresta. Dar-lhe umas porradas. Um tiro bem no meio da testa. ("Os mortos no coração", p. 62)


Fique por dentro

A narrativa curta

O conto, na pós-modernidade, espelha o mesmo sentido de desintegração que, em geral, apresentam as diversas produções estéticas, entregando-se a experimentações, que, evidentemente, alargam suas possibilidades criativas. Desse modo, leva às últimas consequências o espírito modernista do permanente direito à pesquisa da expressão. Por conta disso, se, por um lado, o artista vê-se diante de ilimitadas possibilidades; de outro, precisa dominar, com mãos firmes, os elementos configuradores do gênero, para, assim, conscientemente, palmilhar, com segurança, as veredas que se abrem a seu discurso. O cerne já não mais se concentra na análise social, tampouco na psicologia da personagem. Num universo fragmentado, há o desencontro entre memória e ação; e esta, muitas vezes, resume-se ao mínimo; quando não, desaparece, fazendo assim o mundo interior das personagens - pastoso, envolto, assim, em penumbras."


CARLOS AUGUSTO VIANA
EDITOR

DIÁRIO DO NORDESTE
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=844722

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